A Dinamarca ganhou as manchetes dos sites de notícias de todo o mundo nos últimos dias com dois assuntos muito diferentes e que provocaram reações bem diversas: a liderança no ranking de uma organização internacional mostrando que o país é considerado o menos corrupto do mundo e a aprovação de mudanças na legislação de imigração.
A liderança no ranking da organização internacional “Transparency International” não foi nenhuma surpresa – a Dinamarca sempre esteve entre os primeiros colocados do ranking e este foi o segundo ano consecutivo em que o país foi apontado como o menos corrupto do mundo.
Não sou muito fã de rankings. Considero-os muito perigosos quando são baseados em percepções subjetivas, mas é claro que há muito pouca corrupção na Dinamarca e que o Brasil, cuja posição no ranking piorou em relação à do ano passado, tem muito a aprender com o país escandinavo.
Já as alterações na lei de imigração do país provocaram uma enxurrada de críticas ao país que costuma gozar de uma imagem internacional positiva. Algumas dessas críticas chegaram a comparar a nova legislação à perseguição sofrida pelos judeus na Alemanha no período que precedeu a Segunda Guerra Mundial.
O contraste na forma como as das notícias foram recebidas me levo a pensar se seria possível relacioná-las. Será que elas indicavam que, quanto mais avançada, proba e organizada, mais desumana uma sociedade?
Dissidências
Mas, ao ler os jornais nos últimos dias, fica difícil acreditar nessa relação. As novas regras para imigrantes não são uma unanimidade entre os dinamarqueses, estão gerando debates acalorados e muitos se dizem envergonhados pelo rumo que o país está tomando. Nas últimas semanas, diversos políticos anunciaram sua desfiliação de partidos que apoiaram as medidas. Três parlamentares da Social Democracia votaram contra a orientação do partido de apoiar as novas regras, num exemplo de dissidência que é raro na política dinamarquesa.
Em setembro passado, quando milhares de refugiados lotaram trens vindos da Alemanha, boa parte deles querendo continuar rumo à Suécia, o governo foi aparentemente pego de surpresa. Parece inacreditável, mas um dos países mais organizados do mundo não tinha previsto, ou fez de conta que não tinha previsto, que a onda de migrantes vindos do sul da Europa iria um dia chegar à Dinamarca.
As decisões recentes do Parlamento podem ter sido mais uma demonstração de desespero do governo diante de uma situação que parecia fora de controle. O governo dinamarquês precisava reagir, mostrar que tinha o controle da situação e o que se viu foram as mudanças na legislação, algumas delas consideradas inúteis, outras desumanas, e que resultaram num desastre para a imagem internacional do país.
Humilhação
O confisco de bens na fronteira parte de um princípio razoável: as pessoas com boas condições financeiras não deveriam onerar o estado e deveriam pagar pelos custos de sua estadia. Algo semelhante já acontece com os dinamarqueses desempregados, que só recebem ajuda financeira do estado se provarem que não têm outros meios para se manter. A diferença brutal é que os residentes aqui não são submetidos a revistas nem confisco de bens. Sua situação econômica é avaliada em órgãos públicos e, a partir disso, é decidido se eles devem ou não receber ajuda financeira do estado.
Além da humilhação que a revista e confisco de bens pode impõe aos refugiados, há diversas questões práticas sobre como a medida será implementada que ainda não foram esclarecidas pelo governo. Tem-se a impressão de que o objetivo da medida não foi melhorar as finanças do estado mas sim intimidar os refugiados para que eles se sintam menos encorajados a procurar abrigo na Dinamarca.
No entanto, embora tenham recebido pouca atenção da imprensa, há outras alterações na lei que são bem mais graves. Uma delas é a extensão do tempo que imigrantes com visto de permanência provisória na Dinamarca terão de esperar para se reunir com seus familiares, que passará de um para três anos. Devido à burocracia para se conseguir asilo, na prática, isso significará que refugiados sírios poderão ficar cinco anos longe de seus filhos e parentes, que continuarão tendo de viver em zonas de guerra. Concordo com organizações de defesa dos direitos humanos que afirmam que obrigar pais e mães a se manterem separados de seus filhos por tanto tempo chega a ser cruel.
Tendas para os homens
A lista de constrangimentos que o governo dinamarquês criou para espantar os que fogem da guerra em seus países ou da miséria em campos de refugiados inclui acomodar os homens que chegam sozinhos em tendas ao invés de construções permanentes. O argumento é que as vagas para moradia em construções regulares devem ser deixadas para as famílias que estão chegando. O problema é que existem milhares de habitações desocupadas na Dinamarca que seriam suficientes para abrigar tantos os homens desacompanhados quanto as famílias. Na verdade, as tendas são uma outra forma de repetir a mensagem de que os refugiados não são bem-vindos e que sua estadia aqui é temporária.
Muitos dos defensores das novas regras argumentam que a Dinamarca é obrigada a se proteger das caravanas de refugiados porque é uma país pequeno que não tem condições de arcar com os custos de uma imigração descontrolada. O país recebeu o número recorde de 21 mil pedidos de asilo no ano passado, o que representou um aumento de 40% em relação a 2014. O governo calcula que, este ano, o país de 5 milhões de habitantes receberá mais 25 mil pessoas em busca de asilo.
Na Europa, a Dinamarca foi apenas o nono país em pedidos de asilo per capita de janeiro a outubro de 2015. Foram 304 pedidos de asilo para cada 100.000 habitantes, sendo superado de longe pela Suécia (1.575) e pela Hungria (1.508). A favor da Dinamarca está o fato de que o país aceitou 82% de todos os pedidos de asilo nos nove primeiros meses do ano passado, índice que só foi inferior ao da Bulgária (91%) e inferior ao da Suécia (76%) e Noruega (72%).
Qualquer que tenha sido o número de refugiados que chegaram ao país recentemente, é inegável que a Dinamarca como a conhecemos hoje pode sobreviver com imigração descontrolada. Também não conheço ninguém que defenda que a Dinamarca deva abrir mão de controlar quantos estrangeiros tentam viver no país.
Mas a questão é saber se o fluxo atual de refugiados está realmente fora do controle e é tão desesperador como o governo tenta pintar. Estatísticas mostram que a quantidade de refugiados que chegaram ao país no ano passado não foi muito maior do que a registrada nos anos 1992-1995, quando a Dinamarca recebeu 20.000 pessoas que tentavam escapar da guerra na Bósnia e no total mais de dois milhões de bósnios foram obrigados a migrar.
O melhor lugar do mundo
A situação atual parece ser mais complexa do que a de 20 anos atrás, mas situações extraordinárias merecem reações extraordinárias que não deveriam passar pela humilhação de pessoas em fuga nem de desrespeito aos direitos de crianças. A Dinamarca tem lugar e recursos para receber mais gente do que recebe hoje mas há um sentimento mais forte do que egoísmo que impede isso: medo.
O medo não é só o de que entre os refugiados se escondam terroristas ou criminosos. Há também o medo da perda de privilégios e de que a sociedade uniforme e organizada seja destruída. Muitos dinamarqueses acreditam que não há lugar melhor no mundo do que a Dinamarca o que, sob muitos aspectos, é mesmo verdade.
Deve haver formas menos cruéis e mais inteligentes de proteger esse paraíso. Não seria mais producente se o governo dinamarquês, por exemplo, ao invés de se esforçar tanto para espantar os refugiados, se dedicasse a buscar com a União Europeia uma solução conjunta para o problema?
Não me atrevo a apontar soluções porque não as tenho, mas o que vejo são decisões estabanadas que não diminui a pressão sobre a Europa, não compartilha de maneira mais justa a pressão sobre seus integrantes nem contribuem para diminuir o sofrimento das pessoas em fuga ou em zonas de guerra.