Dinamarca: de exceção solidária à regra mesquinha

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A ponte entre as ilhas de Zelândia e Fyn.

Devemos rever a imagem que temos da Dinamarca. A razão é simples: nem mesmo a imagem que os próprios dinamarqueses têm de sua sociedade corresponde mais à realidade, como escreveu o pesquisador Kim Brinckmann em artigo publicado pelo Politiken.

De acordo com Brinckmann, existe uma regra de que os sonhos, principalmente aqueles relacionados ao mundo da política e às complicadas estruturas sociais, raramente se tornam realidade. Mas, na imagem defasada que os dinamarqueses têm de seu país, a Dinamarca é uma exceção a essa regra. Tal imagem teria sido construída a partir da narrativa de que a Dinamarca é regida por um estado de bem-estar social que foi construído com sucesso e em harmonia com o povo, formado por pessoas simples e trabalhadoras que possuíam ambições modestas.

Brinckmann cita seus avós paternos, uma operária e um pedreiro, e seus pais, um metalúrgico e uma dona-de-casa, como exemplos de pessoas que, como a grande maioria dos dinamarqueses, acreditaram em um projeto: o de garantir bem-estar a todos e realizar sonhos modestos, mas compreensíveis. A casa própria, a compra de um carro, uma televisão em cores e as férias anuais numa ilha ensolarada da Espanha estariam entre esses sonhos.

Abundância

Na Dinamarca de hoje, para a grande maioria, as necessidades básicas estão largamente satisfeitas e os sonhos, antes modestos, foram substituídos por uma realidade quase opulenta. Segundo Brinckmann, os dinamarqueses têm condições de comprar uma ampla casa própria que mais parece uma casa de veraneio. Em vez de um, há dois carros na garagem e, na sala repleta de tabletes e outros brinquedos eletrônicos, a TV em cores virou tela plana. Agora, as seis semanas anuais de férias são insuficientes porque há dinheiro de sobra para viagens às Maldivas, férias de esqui e passeios para compras em Londres e Paris

Mas, para Brinckmann, a riqueza trouxe azedume. Na rica Dinamarca, as pessoas se tornaram azedas e pouco solidárias. A grande maioria que tem muito mais do que precisa não se interessa mais pelo bem-estar da minoria que tem cada vez menos. Ele lembra, por exemplo, que o número de pobres no país dobrou nos últimos quinze anos, em parte como consequência de uma política econômica liberal que reduziu os benefícios aos desempregados e incapacitados para o trabalho.

Também parte da minoria, os imigrantes e refugiados são vistos como inimigos e tratados com escárnio. O fato de ter alcançado a marca de 50 mudanças na lei para dificultar a entrada e a permanência de imigrantes e refugiados no país chegou a ser comemorado pela Ministra da Integração, Inger Støjberg, com uma foto sua posando com um bolo. Não se discute aqui o mérito dessas medidas, talvez algumas delas até sejam necessárias, mas comemorar decisões que podem, por exemplo, impedir que crianças em zonas de guerra se juntem aos pais exilados na Dinamarca é o que chamo cinismo.

Amor proibido

Eu gostaria que Brinckmann estivesse errado mas, quase toda a semana, decisões do governo sancionadas pela maioria do Parlamento chegam a mim como baladas de um sino anunciando o fim daquela Dinamarca que eu admirava tanto e que via como modelo a ser seguido. A última dessas decisões aconteceu dias atrás, quando o Parlamento, depois de sugestão da ministra Inger Støjberg, aprovou uma mudança de lei que torna mais fácil apenas para os dinamarqueses com renda acima de 15.700 reais por mês (o que equivale a 34 mil coroas mensais) trazerem seu marido ou esposa estrangeiro para a Dinamarca.

Como mais de dois terços dos dinamarqueses recebem salários abaixo desse valor, apenas uma minoria será beneficiada pelo relaxamento de regras que definem se uma pessoa terá o direito de viver em seu país com a pessoa que escolheu para se casar. Profissionais como enfermeiros e pedagogos, cujos salários raramente atingem esse patamar, devem, portanto, evitar se apaixonar por um estrangeiro.

Ainda mais grave tem sido a maneira com que os casos dos refugiados em busca de asilo na Dinamarca têm sido tratados. Causa angústia tentar entender, por exemplo, como uma sociedade tão rica se nega a conceder asilo a algumas famílias somalis e decide deportá-las mesmo sabendo do risco de as meninas sofrerem mutilação genital em seu país de origem (ver matéria que escrevi para a RFI Brasil sobre o assunto).

Copenhague.
Copenhague.

Muitas das medidas adotadas pelo governo atual contra imigrantes e os mais pobres do país acontecem com o aval dos Sociais-Democratas, que são atualmente o maior partido no Parlamento e favoritos para ganhar as próximas eleições. Portanto, mesmo com uma mudança de governo, o modelo de um estado de bem-estar social com pouco espaço para solidariedade e princípios humanitários deverá continuar. Será a Dinamarca caminhando para deixar de ser uma exceção à triste regra da desigualdade e injustiça social.

5 comentários Adicione o seu

  1. Caroline Baptista Axelsson disse:

    Texto muito bom. O que seria realmente bom para o mundo seria arrumar todos os países assim ninguém necessitaria sair para ser humilhado fora. Guerras nāo ttrazem benefícios para a humanidade, ódio e corrupçāo nāo trazem benefício. Palavras bonitas sem açāo tampoco ajudam. Os deuses também nāo ajudam a nenhum dos lados….vivemos num beco sem saída.

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  2. Carla disse:

    Texto sensacional👏🏼👏🏼👏🏼 conteúdo excelente que relata precisamente a difícil realidade vivida atualmente por imigrantes e refugiados.
    parabéns Margareth.

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    1. Muito obrigada, Carla. Me alegra que tenha gostado e que eu tenha conseguido expressar um pouco o que, infelizmente, vemos acontecer na Dinamarca.

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  3. Andreia disse:

    Que texto maravilhoso!! Concordo totalmente. Há tempos venho pensando que o filme: Lego, o filme, é o retrato fiel da sociedade dinamarquesa. Muito triste. Porém, o final do filme tá longe de acontecer, infelizmente.
    Eu faço parte desse grupo de esposas de dinamarquês. Meu marido ganha mais do que 34 mil coroas, mas estou “presa” aqui, mesmo se eu quiser voltar para o meu país, pois temos uma filha em comum nascida aqui. Outra questão nada justa nesta dita sociedade “mais feliz “.

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    1. Muito obrigada, Andrea. Fico feliz que tenha gostado do texto. Interessante sua observação sobre o filme “Lego”. Vou pensar nisso na próxima vez que eu assistir ao filme. A situação dos cônjuges de dinamarqueses que residem aqui ficou mesmo mais complicada nos últimos anos. A saída que muitos têm encontrado é pedir a cidadania dinamarquesa, o que também nem sempre é fácil conseguir devido às inúmeras condições impostas aos candidatos. Abraços.

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