Oferta do dia: salvação da alma no carrinho do supermercado

Português: Interior de um supermercado
Alma salva e carrinho cheio.  (Foto via Wikipedia)

Enquanto percorro os corredores do supermercado percebo que algo está me incomodando e me deixando confusa. Não consigo encontrar o que encontro e começo a andar como uma barata tonta entre as prateleiras. De repente, o estalo: é claro, é o sistema de som do supermercado que toca uma canção religiosa atrás da outra e em volume altíssimo que me distrai da minha lista de compras.

Vou atrás de meia dúzia de bananas e recebo uma convocação para salvar minha alma. Tento escolher pepino enquanto alguém roga por piedade a Cristo. Vou atrás da pasta de dentes e uma cantora aos berros oferece sua vida ao Senhor. Na seção de congelados sou informada que o Senhor é o pastor que conduz o cantor da canção da vez por caminhos nunca vistos.

Volta e meia um locutor, que soa como alguém em completo êxtase, interrompe a programação musical para saudar os clientes e anunciar o próximo número. Enquanto tento achar o polvilho, o locutor informa que estou fazendo compras no dia em que o supermercado oferece a seus clientes programação musical dedicada à purificação das almas. Em outras palavras, a perseguição religiosa vai continuar pela tarde afora.

Na banca dos tomates, reclamo para mim mesma e em voz alta da pregação em pleno supermercado. Uma outra cliente ri, aparentemente solidária, mas com ar resignado de quem já se acostumou a ofertas semelhantes.

Penso em desistir das compras, perguntar em que dias a programação se repete para evitar voltar àquele supermercado naquele dia. De repente, como vindo do além, surge saltitante o locutor, desfilando pelos corredores com seu microfone portátil. Não resisto e digo: “Ah, é você então que está tocando tudo isso!”. Ele responde com um ar orgulhoso e ao mesmo tempo embevecido: “Sim, sou eu”. Novamente, não consigo segurar a língua: “Ah, mas eu não estou gostando nem um pouco. Vim aqui fazer compras mas acabei numa missa!”. O rapaz me olha surpreso, quase chocado, me dá um sorriso amarelo e some entre as prateleiras. A música religiosa continua, mas logo depois o volume é diminuído. Ufa, menos mal!

O que não me falta é autocrítica. Me pergunto, sempre, se não estou sendo intolerante quando me irrito com esse tipo de demonstração religiosa, mas nem muito auto questionamento me convence de que sou obrigada a ouvir hinos religiosos numa loja de supermercado que faz parte da maior rede de estabelecimentos do gênero no país. Sou defensora ardorosa da liberdade religiosa, mas tenho o direito de exercer a minha descrença em paz, sem ser bombardeada por proselitismo de todos os lados.

Estou impressionada com a ostentação da religiosidade de indivíduos e em espaços públicos em Campos dos Goytacazes. No sinal de trânsito, o carro na frente porta uma mensagem sobre a importância de Jesus Cristo na vida do proprietário do automóvel. Na rua, o cartaz de um candidato às eleições me informa que ele é defensor da palavra divina. No táxi, o motorista me pergunta se já tenho igreja para, em seguida, me convidar a visitar a dele, sem se dar ao trabalho de cogitar que eu não costumo frequentar templos religiosos. A vendedora da loja, depois de me entregar o produto que comprei e ouvir meu obrigada, se despede dizendo “Deus proteja sua família”. Percebo a boa intenção da despedida, mas ficaria mais satisfeita com um simples “volte sempre” ou “tenha uma boa tarde”. No restaurante, o proprietário mandou escrever na parede que aquele é um estabelecimento protegido por Jesus Cristo. Eu ficaria mais tranquila se a inscrição fosse uma promessa de que a higiene reina na cozinha.

Essa avalanche de mensagens expõe opções de fé que deveriam ser mantidas na esfera privada. A cantora grita que colocou sua vida nas mãos de Deus e eu penso: bom para ela, se ela está feliz com a entrega, mas isso não me diz respeito.

Talvez, como a freguesa da banca de tomates do supermercado, eu devesse simplesmente ignorar o bombardeio de mensagens religiosas. Mas os anos em que vivi na Dinamarca me deixaram desacostumada à importância da religião na vida de tantos brasileiros. Aliás, apesar de lamentar a escolha de algumas pessoas, longe de mim querer dizer a alguém em quem ou no que acreditar, especialmente quando nem eu mesma tenho respostas para meu próprio consumo.

Porém, esse bombardeio de mensagens religiosas é excludente. Você é convidado, convocado, pressionado a fazer parte do rebanho. Se não é crente e não se encaixa, é um ser anômalo, um estranho ou, como observou o médico Drauzio Varella, corre o risco de ser classificado como imoral.

Mais sobre o assunto no site do Paulo Lopes:  Drauzio Varella diz por que ateu desperta a ira do fanático religioso

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5 comentários Adicione o seu

  1. marilza disse:

    Olá Margareth, imagino o seu desconforto com essa fúria catequizante, kkkk. Eu não tenho religião, mas prefiro dizer que sou católica, qdo indagada, os católicos são mais discretos. Aliás, acho o Vaticano um Luxo!! Será que ali tem caveira de burro enterrada? kkkkkkkkkkkkkkkkk.
    Tomara que não entre em nenhuma loja que tenha a pregação do Pastor Silas Malafaia, tu vais ficar dooooooida, ele pula grita, gesticula, ofende os adeptos de outras religiões, os gays, menina – o homem é o cão!!!!!!!!!!!!!
    Um abraço

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    1. Olá Marilza, ainda não tive de ouvir uma pregação do Pastor Silas Malafaia e, sinceramente, se é como você diz, prefiro continuar assim. Tentei abordar o assunto com humor, mas acho essa tendência de invasão da religiosidade das pessoas no espaço público muitíssimo perigosa, especialmente quando ela se estende a instituições públicas que deveriam obedecer ao princípio da laicidade do Estado. Veja só este exemplo : Vereador expulsa servidor por desrespeito à leitura da Bíblia Abraços, Margareth

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  2. Samantha disse:

    Querida, estou na Europa e curtindo demasiadamente o direito ao silêncio! Amei tua tessitura.
    beijos irlandenses.

    Sam

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    1. Obrigada, Samantha. Curta bastante os ares outonais da Irlanda. Beijos

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  3. Patrícia Marmori disse:

    Isso é Brasil! Kkkkkk. De volta as raízes!

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