Bolsa família à dinamarquesa e o antigo direito dos pobres de se alimentar*

Sempre ouço e leio comentários de brasileiros que admiram o desenvolvimento alcançado pela Dinamarca. É verdade que há muito o que admirar na qualidade de vida dos dinamarqueses, mas é também muito curioso que entre esses meus compatriotas existam críticos ferrenhos dos programas de distribuição de renda do governo brasileiro. Talvez eles não saibam, e daí uma das razões para este texto, que um dos alicerces da sociedade dinamarquesa é um sistema de seguridade social com várias modalidades de apoio financeiro a diversos grupos da sociedade. É esse sistema que garante aos cidadãos daqui recursos financeiros para sobreviver em condições dignas mesmo quando não dispõem de uma fonte de renda ou têm renda muito baixa.

I Høst (Na Colheita) de L. A. Ring (1854-1933). Foto de Statens Museum for Kunst via Wikimedia.
I Høst (Na Colheita) de L. A. Ring (1854-1933). Foto de Statens Museum for Kunst via Wikimedia.

Essas formas de apoio vão desde a “bolsa-família” dinamarquesa ou a kontanthjælp (ajuda em dinheiro, na minha tradução para o português) que é concedida aos desempregados que não recebem seguro-desemprego de caixas de benefício e que não possuem bens que possam ser usados para cobrir despesas como alimentação e moradia. Segundo a página do Ministério do Trabalho da Dinamarca, o valor do kontanthjælp varia de acordo com a idade e atualmente é de 10.689 coroas dinamarquesas (4.524 reais*) para pessoas acima de 30 anos de idade. Se o beneficiado tem filhos, a quantia sobe para 14.689 coroas (6.218 reais).

A maior parte dos desempregados, no entanto, recebe o dagpenge (que traduzo como dinheiro por dia), que é pago aos que contribuíram para caixas de seguro-desemprego financiadas parcialmente pelo estado. O dagpenge atualmente está em cerca de 17.930 coroas (7.590 reais) por mês para os que tinham emprego em tempo integral.

Assim como nos programas de distribuição de renda do Brasil, as mulheres são as titulares dos beneficios destinados aos seus filhos, como é o caso do cheque-criança (børnecheck), cujo valor este ano varia de 1.468 (621 reais) a 915 (387 reais) por mês, de acordo com a idade da criança ou adolescente. Todas as crianças e adolescentes do país têm direito ao benefício, embora as famílias com renda mais alta recebam valores menores.

A lista de modalidades de transferência de renda do estado para grupos sociais mais desfavorecidos não termina aí. Mães ou pais que vivam sozinhos com seus filhos também podem receber um auxílio financeiro adicional de pouco mais de 1.300 coroas (550 reais) por semestre. Outro benefício é o auxílio-moradia, destinado a pessoas sem condições de arcar com o pagamento integral do aluguel e que varia conforme o número de residentes no imóvel alugado. Para uma família com três crianças, o valor mensal máximo permitido é de 4.333 coroas (1.834 reais).

Um benefício que todos os jovens podem receber, independentemente da renda familiar, é o Statens Uddannelsesstøtte, conhecido como SU (em português, bolsa de estudo do estado) e pago aos estudantes de instituições profissionalizantes ou universidades. O valor do SU também é variável, de acordo com o tipo de instituição frequentada e a residência do estudante (se mora sozinho ou com os pais). Um estudante universitário que já deixou a casa dos pais recebe atualmente 5.839 coroas (2.471 reais) por mês.

Essa rede de proteção pecuniária é uma das explicações para a alta cobrança de impostos na Dinamarca, que chega a levar cerca ou mais de 50% dos salários dos trabalhadores e vem sendo ameaçada pela onda neoliberal que também atinge a Escandinávia. Uma das críticas ao sistema é que ele é sabotado por pessoas que tentam receber benefícios a que não deveriam ter direito ou que, viciadas na dependência do estado, se acomodam e deixam de lado a procura por um emprego.

Mas, pelo que percebo da sociedade dinamarquesa e apesar das ameaças, creio que o sistema vai sobreviver, mesmo que alterado. A razão é o sentimento de que o bem estar dos mais fracos é uma responsabilidade da coletividade.

Dias atrás, ao ouvir crianças de uma escola pública celebrando a chegada do outono com uma antiga canção infantil, fiquei ainda mais convencida disso. Percebi na letra da canção intitulada Marken er Mejet (em português, “O Campo Está Roçado”), composta há quase um século e meio, um sinal do quanto o sentimento de solidariedade que inspira o sistema de seguridade social dinamarquês está enraizado na sociedade. Abaixo minha tradução para a primeira estrofe que descreve a colheita dos campos.

O campo está roçado e o feno colhido,
os grãos estão nos celeiros e o feno em fardos.
A fruta está colhida e a árvore balançada,
e agora é ir para casa com a última carga.
Rasgue o campo levemente,
é a antiga lei,
o pássaro e o pobre também devem ser alimentados.

De acordo com uma professora da escola, o motivo para a canção ensinar que o solo deveria ser levemente sulcado para que nele ainda ficassem restos da colheita tinha fundo solidário: assim os pobres e aves daquele tempo tinham uma chance de saciar a fome com o que restasse da colheita. Esse pequeno mas significativo gesto de solidariedade garantiu a sobrevivência de muitas famílias paupérrimas e saber de sua existência me ajuda a compreender as raízes de uma sociedade que se fez mais solidária do que a de onde eu vim, onde a sociedade ainda se perde em discussões mesquinhas sobre a validade de programas de distribuição de renda.

Marken er Mejet no YouTube (letra de Mads Hansen, de 1868, e melodia de autoria desconhecida)

* Erro ortográfico corrigido em 24/12/2014: no título em dinamarquês da canção, onde se lia “Fejet” (varrido), agora se lê “Mejet” (roçado, ceifado, cortado)
** Esse e demais valores em reais foram calculados com base em taxas de câmbio do dia 22/10/2014)
 

4 comentários Adicione o seu

  1. bode do lula disse:

    Agora me relate, por favor, quando vezes em campanha eleitoral o sistema de assistência foi usado até de forma terrorista por algum desses, como ocorre aqui

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  2. marilza disse:

    Olá Margareth, estou impressionada com a política dinamarquesa de amparo aos cidadãos, é louvável! Qual é o sistema político da Dinamarca?
    um abraço

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    1. Oi Marilza,
      o atual governo é social-democrata, com apoio de um outro partido de centro-esquerda. Antes desse governo, houve um de maioria liberal. Os governos aqui sempre se intercalaram entre governos sociais-democratas e um outro mais liberal ou conservador. Mas mesmo os governos liberais ou conservadores nunca ousaram mexer substancialmente nas políticas de amparo aos cidadãos, que foram institucionalizadas da maneira como a conhecemos hoje por um governo social democrata.
      Um abraço, Margareth

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  3. Margareth, que tal você listar alguns itens encontrados em algum supermercado daí, que referem à “cesta básica copenhagueana” – em paralelo à brasileira – ou de outra cidade daí que você conheça?
    E, no cardápio cotidiano daí, além de itens não alimentícios de compra, por exemplo, em supermercado, talvez haja itens nessa cesta de natureza ou finalidade igual ao usado aqui.
    Talvez, assim fique ainda melhor pensar/imaginar/calcular o gasto de coroas dinamarquesas que o/a desempregado/a em classe social desfavorecida receba enquanto sobrevive assim, nessas condições (desempregado e desfavorecido em outros âmbitos).

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