Minha vida de marciana

Garças sobre lago congelado em Copenhague.
Garças sobre lago congelado em Copenhague.

No voo de volta da minha viagem mais recente ao Brasil, assisti ao filme ”The Martian” que eu traduziria literalmente como “O Marciano” em vez de “Perdido em Marte”, como foi feito no Brasil. Gostei do filme e o que mais me inquietou nele foi tentar me ver naquela situação de isolamento, solidão e falta de perspectivas num ambiente hostil.

Depois, pensando sobre o filme, tive um estalo. Aquela sensação ou algo muito próximo dela, eu conheço bem. Na Dinamarca, não falta oxigênio no ar e a paisagem é infinitamente menos árida, mas aquela sensação de estar sozinha, isolada e sem rumo num lugar inóspito ocasionalmente emerge.

Curiosa essa sensação porque estou num dos países mais ricos, organizados, desenvolvidos e supostamente felizes do mundo. Infelizmente, esse bando de adjetivos não ajuda a diminuir a “sensação marciana” que, volta e meia, aparece.

Nos dias hibernais na Escandinávia, quando a luz do sol é festejada com postagens à la Poliana no Facebook e fotos “feel good” no Instagram, não é preciso muito esforço para eu me sentir como alguém vivendo solitariamente num planeta distante. Enquanto trabalho sozinha em casa, a comunicação com os outros seres vivos é feita em geral por via eletrônica, frequentemente pela palavra escrita. Os “smartphones” raramente são usados para conversas e estão me tornando mais burra na minha capacidade de me comunicar com outros seres humanos. É tudo na base do “zapzap” e outras parafernálias do tipo.

Quando saio em busca de mantimentos, a sensação de isolamento continua. Me protejo com botas e camadas de roupas para enfrentar o ambiente externo hostil, onde temperaturas abaixo de zero são normais. Não preciso de máscara para respirar, mas visto uma veste imaginária, embora poderosa, que esconde os trejeitos e exageros de uma brasileira fora do seu lugar.

Com essa veste evito me revelar demais, me expressar demais, me expor demais. Os gestos ficam mais contidos e os abraços não saem dos braços. A ironia, meu esporte favorito, deixa de ser exercitada, e a curiosidade, uma das minhas (des) graças, é reprimida.

Me cubro para não me deixar afetar pela incompreensão e dificuldades de entendimento com os nativos. O ouvido ruim ou má vontade do dinamarquês para ouvir sua própria língua falada por um estrangeiro são um grande obstáculo nessa falta de entendimento. Com os anos, embora meu dinamarquês tenha melhorado, minha paciência com a impaciência dinamarquesa diminuiu.

Na terra onde nasci, trajo uma veste parecida. Lá também disfarço minha irritação com o comportamento de alguns que se consideram num patamar superior aos demais e me reservo algumas opiniões para evitar conflitos. É fato que a maioria de nós traja vestes assim em qualquer lugar, mesmo no país onde nascemos e fomos criados. Mas no Brasil minha veste se torna mais fina e permeável. Lá, não me sinto uma marciana.

Aqui, nenhuma nave vem me buscar e providencio meu próprio resgate em encontros aquecidos pelos abraços e regados a gargalhadas dos amigos que fiz aqui.

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4 comentários Adicione o seu

  1. Marilza disse:

    Nossa, Margareth, temperatura abaixo de zero, é normal aí?! Só de pensar nisso, fico incomodada! Pelo seus relatos, a respeito da Dinamarca ser um país, civilizado, moderno, culto e de gente feliz, acho que falta borogodó, conversa fiada, papo de cerca Lourenço, no povo dinamarquês, rs, deve ser isso que vc sente falta! De qualquer forma, deve ser muito difícil ser estrangeira, morar distante de nossos parentes e patrícios. Por isso, reúna seus amigos aí e mime-os, faça caldos quentes, bem temperados, com torradinhas amanteigadas e um bom vinho. É um bom motivo para longas e proveitosas conversas. Um abraço.

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    1. Falta mesmo um bocado de borogodó, Marilza, e eu já estou providenciando mais um caldo. Muito obrigada pela leitura. Abraços.

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  2. Cássio disse:

    Acho que isso tem a ver também com a pessoa. Depois de 25 anos no Rio, sinto-me assim: em Marte. Tenho dois amigos — não acredito em gente que diz que muitos deles. Mas a amizade não é como aquelas que fiz em São Paulo, onde cresci. Sim, é quase certo que o problema seja eu.
    Cada vez mais tenho esperança de que as palavras de Einstein (algo como “A solidão é algo indesejável na juventude, mas uma dádida na maturidade”) guardem alguma verdade.
    É, parece que podemos ficar perdidos em qualquer lugar do universo: em Marte, em Copenhague ou no Rio.

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    1. As palavras do Einstein guardam muita verdade para mim. Tenho apreciado mais a solidão e acho que também o faria no Rio ou Brasília. Mas, talvez apenas por hábito, ainda preciso muito do convívio social, de preferência com gente que consegue se indignar e rir das mesmas coisas que eu.

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